Internacional
A inflexão de Xi Jinping
O novo livrinho vermelho do Partido Comunista da China
O 19º Congresso anuncia a maior guinada da segunda potência mundial desde 1978
LiTao/Xinhua/afp
Na era maoísta, os congressos do Partido Comunista da China eram relativamente raros e assinalavam grandes viradas, como expurgos na cúpula ou a Revolução Cultural. Desde a virada pragmática de Deng Xiaoping, em 1978, eles foram uma rotina quinquenal para formalizar a renovação regular da alta burocracia e de seus planos de desenvolvimento orientados para um crescimento econômico acelerado sem sobressaltos políticos.
Entretanto, o 19º Congresso, encerrado em 24 de outubro, se não chegou a ser um retorno aos velhos tempos, sinaliza uma inflexão. Como marca o início do segundo mandato de Xi Jinping, seria de esperar a indicação de um potencial sucessor para o Comitê Permanente do Politburo, órgão máximo do Partido, mas todos os integrantes são sexagenários relativamente apagados, sinal da expectativa de um terceiro mandato para Xi em 2022-2027.
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Mais sintomática ainda é a incorporação do “pensamento de Xi” aos estatutos do Partido. Apenas Mao Zedong tivera essa honra em vida. Deng Xiaoping, o responsável pela maior reviravolta ideológica desde a Revolução, só teve seu pensamento incorporado às diretrizes partidárias alguns meses após a sua morte, em 1997, embora fosse aplicado desde 1978 e matéria obrigatória dos cursos superiores em 1980.
Xi não tomou, até agora, nenhuma medida radical, mas queima etapas. Já foram criados, nas principais universidades de Pequim e Tianjin, departamentos dedicados a estudar o Pensamento de Xi Jinping e incorporá-lo nos livros-textos, salas de aula e mentes dos estudantes, além de grupos de estudos em todo o país.
Os 14 pontos do novo livrinho vermelho são: 1) Garantir a liderança do partido sobre todo o trabalho; 2) Comprometer-se com um enfoque centrado na sociedade; 3) Continuar uma reforma integral e profunda; 4) Adotar uma nova visão de desenvolvimento; 5) Ver que a sociedade é quem governa o país; 6) Garantir que toda área de governo se baseie no direito; 7) Defender os valores socialistas; 8) Garantir e melhorar as condições de vida da sociedade pelo desenvolvimento;
9) Garantir a harmonia entre homem e natureza; 10) Buscar um enfoque global para a segurança nacional; 11) Defender a absoluta autoridade do Partido Comunista sobre o Exército popular; 12) Defender o princípio de “um país, dois sistemas” e promover a reunificação; 13) Promover a construção de uma sociedade do futuro compartilhada com toda a humanidade; e 14) Exercer um controle total e rigoroso do Partido.
Ambiguidades e obviedades à parte, resta o ajuste autoritário às condições criadas pelas últimas décadas de crescimento. Ao deixar de ser um país emergente para se tornar a segunda potência econômica mundial, a China deve passar da mera industrialização para o desenvolvimento de tecnologia de ponta própria, do modelo exportador para o cultivo do mercado interno, de uma força militar defensiva para uma projeção de poder global, e do vale-tudo pelo crescimento para a atenção à sociedade, o ambiente e o combate à corrupção e à desigualdade extrema. Do “enriquecer é glorioso” de Deng para a correção dos desequilíbrios e garantia de certo grau de estabilidade, justiça e segurança social a longo prazo.
É uma solução possível para o esgotamento do modelo “Chimérica” de crescimento baseado em endividamento dos EUA com a crise de 2008. Entretanto, enfrenta resistência de uma burguesia emergente, faminta de capitalismo e livre-empresa. Ao aprovar as propostas de Xi e um implícito terceiro mandato, o Partido parece reconhecer a exigência de unidade e pulso firme durante essa transição delicada, sob pena de perder o poder. A economia deve permanecer “socialista”, ao menos no sentido de controle estatal do desenvolvimento.
Enquanto isso, analistas internacionais apontam o endividamento das empresas chinesas e insistem na explosão iminente da “bomba”. “É uma questão de ‘quando’, não de ‘se’: quanto mais a China adiar o enfrentamento, mais graves serão as consequências”, escreve The Economist, mas leia-se com um grão de sal. “Por padrões internacionais, os bancos chineses estão profundamente falidos”, resenhava The New York Review of Books sobre China’s Pitfall (A Armadilha Chinesa), de He Qinglian, em 1998, e o PIB chinês decuplicou desde então.
Quando o Estado controla de fato a economia, o crucial não é a dívida nos livros-caixa, mas o crédito do Estado junto aos cidadãos. Se falir, será por não entregar o prometido. Até aqui, era um crescimento da ordem de 10% ao ano. O New Deal de Xi, digamos assim, é um crescimento mais “social” e ordenado, mas menos rápido e talvez mais autoritário.
Um exemplo é o “sistema de crédito social” anunciado em 2014 e a caminho da concretização. Coletará dados em massa sobre cidadãos e empresas, de comportamento no trânsito a atividades nas redes sociais, a partir dos quais cada cidadão receberá uma pontuação com base na qual ganhará ou perderá direitos e privilégios, tais como concorrer a cargo público, abrir empresa ou viajar de primeira classe.
Fará o Grande Irmão de George Orwell parecer um amador e a série de ficção científica Black Mirror um sóbrio documentário, mas tem o mérito de recordar aos economistas que crédito não é só uma questão de dólares ou de yuans. A questão é: o povo chinês aceita esse novo contrato social e essa visão de “sociedade do futuro”?
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